Medicina Culinária: uma nova área da medicina em ascensão nas Universidades e na Prática Médica
Embora a epidemia de obesidade esteja avançando em diversos países, a desnutrição e a insegurança alimentar continuam atingindo elevadas taxas no século XXI. Neste cenário epidemiológico, o papel da nutrição dentro da área de medicina tem passado por uma transformação. Durante a última década, diversas publicações internacionais alertaram para a discussão sobre a pouca atenção que a nutrição recebe na formação médica, visando mobilizar a sociedade e as instituições para mudanças. Recentemente, o Grupo de Trabalho sobre Nutrição e Estilo de Vida do American College of Cardiology’s Cardiovascular Disease Prevention observou que 73% dos médicos entrevistados sentiram que receberam pouca ou nenhuma educação necessária durante a residência médica para aconselhar os pacientes sobre nutrição.
Neste contexto, a Medicina Culinária tem emergido como uma “nova disciplina” dentro de cursos de medicina. Embora ainda não haja uma única definição, provavelmente por se tratar de uma nova área, a Medicina Culinária pode ser definida como um novo campo da medicina baseada em evidências, dentro da Medicina do Estilo de Vida e da Medicina Preventiva, que incorpora conhecimentos transdisciplinares de nutrição, psicologia e gastronomia junto com a ciência da medicina.
Em 2007, a primeira edição da conferência “Cozinhas Saudáveis, Vidas Saudáveis – Cuidando de Nossos Pacientes e de Nós Mesmos – Healthy Kitchens, Healthy Lives – Caring for Our Patients and Ourselves” aconteceu na Universidade de Harvard. Foram realizadas aulas práticas e oficinas do tipo hands-on cooking (literalmente colocar a “mão na massa”), combinadas com aulas expositivas relacionadas à nutrição. Posteriormente, em 2012, a primeira cozinha pedagógica vinculada a uma faculdade de medicina foi criada na Universidade de Tulane em New Orleans e hoje o espaço se chama The Goldring Center for Culinary Medicine, consolidando-se como referência no movimento da Medicina Culinária. Atualmente, mais de 50 universidades nos EUA oferecem aulas de medicina culinária durante a graduação em medicina e este movimento tem se espalhado pela Europa e América Latina.
No Brasil, a primeira disciplina eletiva de Medicina Culinária foi criada na Universidade de São Paulo (USP) em 2018. Atualmente, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e Santa Casa também oferecem a disciplina de Medicina Culinária. Em agosto de 2023, foi realizado o “I Encontro dos Organizadores dos Cursos de Medicina Culinária em Escolas Médicas de São Paulo”. Na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), as primeiras aulas de Medicina Culinária foram ministradas em 2022 para os estudantes de medicina do quinto ano. Estas aulas têm ocorrido na Unidade de Medicina Culinária e Nutrição, localizada no Gastrocentro, e vinculada ao OCRC – Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades. As aulas surgiram como parte de um projeto de extensão ligado ao projeto MeNu (Medicina Culinária e Nutrição na Atenção Primária à Saúde), cujo escopo é integrar conceitos de nutrição de forma transdisciplinar, com foco na mudança comportamental e no preparo de alimentos caseiros, com amplo público-alvo que inclui não só os futuros médicos da UNICAMP, mas também funcionários e professores de ensino fundamental de escolas públicas.
Nessa linha, a Medicina Culinária tem sido trabalhada pelo nosso grupo sob a perspectiva de quatro pilares: o autocuidado do médico; o desenvolvimento de habilidades culinárias; o conhecimento de conceitos básicos de nutrição e a comunicação médico-paciente. Estes pilares complementam-se na prática clínica, com o objetivo comum de aproximar os médicos e, consequentemente, seus pacientes de padrões alimentares saudáveis, com escolhas alimentares equilibradas e sustentáveis através de compras, preparo de refeições e alimentação saudável, para promover a saúde e prevenir e auxiliar no tratamento de doenças relacionadas com a alimentação.
Na verdade, a nutrição é indissociável de todas as outras formas terapêuticas, sejam clínicas ou cirúrgicas e investir em Medicina Culinária, é, em última instância, investir na saúde e formação do médico, bem como de outros profissionais da saúde e, consequentemente, na qualidade do cuidado médico. Em publicação recente do Ministério da Saúde do Brasil, intitulada “Matriz de Cuidados Alimentares e Nutricionais na Atenção Primária à Saúde”, os autores reforçaram que a responsabilidade pelos cuidados nutricionais deve ser compartilhada entre todos os profissionais da equipe multidisciplinar de saúde.
Nesse sentido, a Medicina Culinária tem sido reconhecida globalmente como receita para a boa saúde, ganhando espaço nos cursos de medicina no Brasil e no mundo, trazendo resultados positivos baseados em evidências científicas, e colocando os nutricionistas como os principais atores dessa “trans/formação”.
Autoras:
- Profa. Dra. Ana Carolina Junqueira Vasques – FCA UNICAMP
- Profa. Dra. Caroline Dario Capitani – FCA UNICAMP
Idealizadoras do Projeto MeNu – Medicina Culinária e Nutrição na atenção primária à saúde
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